A medicina já sabe que a memória musical é uma das últimas que são perdidas por causa da deterioração cerebral provocada pelo mal de Alzheimer. Ainda é difícil dizer, porém, se é possível usar esse conhecimento para prevenir a progressão da doença. Uma iniciativa independente quer testar essa hipótese, sem a pretensão e a seriedade de um estudo acadêmico, unindo famílias e pacientes com Alzheimer a músicos. A proposta do projeto Músicas Para Sempre é fazer com que os artistas conheçam um pouco sobre a vida dos pacientes e produzam músicas sobre eles.
A vida do empresário aposentado Hélio Queiroz, 65, foi a primeira que virou música. Há três anos, Camila e Mariana, filhas de Hélio, acharam que havia algo de estranho com o pai, então dono de uma escola profissionalizante. “Elas perceberam que eu não estava fazendo coisas muito corretas, e eu não tinha essa noção. E começaram a procurar um médico para mim, sem eu saber”, diz.
No começo foi difícil, ele conta. “Ninguém gosta de saber que tem uma doença como essa. Você diz para você mesmo: ‘não tenho isso!'”. Após o impacto do diagnóstico, Hélio conseguiu vender a escola com o auxílio das filhas. “A escola estava ruim, ruim mesmo. Demorei um ano para vender. Depois disso, até fiquei melhor”, conta. Hélio responde bem aos vários medicamentos, que toma sem ajuda, segundo a filha Mariana. Ele vive sozinho, dirige e pratica exercícios. “Estou aqui, vivendo”, diz.
A ideia da homenagem no projeto Músicas Para Sempre nasceu como uma peça de divulgação para o filme francês “A Viagem de Meu Pai”, lançado neste ano no Brasil. O personagem principal tem Alzheimer e o filme mostra a relação dele com a filha. Retratar a vida de Hélio seria uma maneira de mostrar que cenas do filme também aparecem na vida real.
O exempresário não consegue esconder a felicidade ao se lembrar da músicahomenagem que recebeu. “Todos os meus amigos, minha família e pessoas que me apoiam estavam lá. Tenho só a agradecer. Nunca em minha vida imaginei sentir 10% dessa emoção”, relata.
CANÇÃO
A música sobre a vida de Hélio foi composta por Lucas Mayer. Ela começa assim: “Para começar a sua história/Na ladeira da Faap, rolimã/Ia pedalando todo dia para a escola/Pra sobrar aquela grana pro sorvete de amanhã/Seu nome misturou o nome do seu pai, com o do seu vô/E para nós/Desde pequenas era comum ouvir na sua voz/Meu nome é Hélio Elpidio Pereira de Queiroz” E segue com o refrão: “Pai, estamos aqui pra te lembrar/Que onde o mar está/É aonde queremos ir/E você vai nos levar”.
Para o compositor, a parte mais difícil foi selecionar o que ia entrar ou não na música. Com menos da metade das histórias, a canção já tinha mais de cinco minutos. “Ter que escolher os momentos da vida de uma pessoa para encaixála na música é estranhíssimo, porque eu estava selecionando o que seria mais importante do meu ponto de vista. Por exemplo, não consegui colocar o Chico, melhor amigo do paciente, na letra.” Apesar disso, o resultado foi aprovado por todos os envolvidos, inclusive pelo maestro João Carlos Martins, apoiador do projeto e entusiasta das propriedades terapêuticas e transformadoras da música. “Vivi a experiência de ter uma mãe com Alzheimer e um pai com memória de elefante até o fim da vida”, diz.
Que há alguma relação entre Alzheimer e música ele já sabe há tempos. “Quando a gente queria acalmar minha mãe, meu pai reproduzia minhas interpretações da obra de Bach e eu observava a tranquilidade que vinha do olhar dela, enquanto ouvia gravações do filho que ela já não reconhecia mais.” Quanto à memória, tudo indica que Martins, 76, puxou ao pai, que “quando morreu, aos 102 anos, estava plenamente lúcido e sabia 200 sonetos de cor”.
A música habita regiões distintas das da memória convencional. Uma música relacionada a fatos da vida passada do paciente, como uma estratégia de retenção, pode funcionar como uma “chave para o passado”, explica André Palmini, neurocientista do Instituto do Cérebro da PUCRS.
A memória da melodia, principalmente, é bastante preservada, mesmo no Alzheimer, explica Wagner Gattaz, professor de psiquiatria da USP. De todo modo, diz o professor, as memórias autobiográficas costumam durar mais. “A música já é usada para tranquilizar, mas pode sim ajudar a guardar mensagens simples”, diz.
Fonte: Folha de São Paulo